Coronel Gaspar, 23 de agosto de 1994
Davi, venho por meio desta carta lhe dizer o quanto estou morrendo de saudades de você.
Sei que ainda és pequeno para entender as coisas da vida, mas estou aqui para lhe dizer que a mamãe lhe ama muito e que só estou longe de você porque, no momento, não tenho condições de cuidar de ti como você merece.
Meu filho querido, meu presente de Deus, a vovó Selma foi quem o Senhor colocou no meu caminho para cuidar de você.
Não tenho como ligar todo dia — o cartão de telefone é caro, e a mamãe não tem telefone fixo em casa. Na verdade, filho, nem casa eu tenho ainda. Estou morando com uma amiga, a Geovana. Ela é superparceira, compreensiva, e tem me dado uma força danada aqui em São Paulo.
Filho, se eu não conseguir melhorar, vou embora com ela para fora do Brasil. Vou para Portugal. Vou me embarcar clandestinamente em um navio com o meu namorado. Queria ir lhe ver antes, pois tudo indica que estarei partindo mesmo.
Você só tem quatro aninhos, meu filho, mas eu não tenho recurso algum para ficar contigo. Aqui na cidade grande, tudo é difícil, tudo muito caro.
Eu prometo que vou juntar muito dinheiro para poder lhe dar um futuro melhor.
Eu te amo. Fica com Deus.
A vovó Selma vai ler essa carta para você.
Te amo, te amo.
Abraços,
Luíza Vidal de Rabelo
Céu Azul, 23 de agosto de 2010
— O que você está fazendo com essa carta nas mãos de novo, Davi Emanuel?
— Só estou lendo novamente, vó. A minha mãe nunca voltou, nunca deu notícias. Nem lembro mais do rosto dela.
Cansei de esperar, vó. Já se passaram 16 anos, e justo hoje, decidi esquecê-la de uma vez por todas.
— Eu deveria ter evitado te levar à rodoviária naquele dia em que ela decidiu ir embora com aquele mecânico vagabundo.
Só de lembrar da cena de você chorando e gritando por ela, meu coração se corta.
E ela, com a desculpa de tentar uma vida melhor, só mandou essa carta e nunca mais pisou aqui de novo.
Uma filha ingrata, que só me deu desgosto. Tirando você, que és, para mim, uma bênção de Deus.
— Eu vou seguir minha vida agora, vovó, focando em meus sonhos e naquilo em que acredito.
A ausência da minha mãe foi preenchida pela senhora. E não quero mais ter esperanças de ver alguém que sequer lembra de mim.
— Prepare-se, meu filho. O mundo lá fora não é brinquedo.
Não tenho muita leitura, mas sei que as coisas não são fáceis.
Não estarei aqui para sempre com você, mas espero que seja feliz.
Eu... eu... eu...
Eu te amo, Davi. Eu te amo.
— Vó! Vó! Acorda, vó!
Não me deixe! Não me deixe!
Céu Azul, 23 de agosto de 2020
— Dez anos que perdi minha vó, Samuel.
Era um dia como esse: frio, triste e choroso.
Lá estava eu, segurando a carta que minha mãe escrevera antes de sumir no mundo.
De repente, minha vó começou a passar mal e faleceu ali, bem na minha frente.
— Sei que você amava demais sua vó, mas será preciso se desprender um pouco dessas lembranças.
Elas não estão lhe fazendo bem, Davi.
Bora trabalhar. A redação aqui do jornal Expresso está uma loucura com as notícias que estão chegando sobre esse novo vírus.
Você tem uma matéria para postar.
— Está bem, Dr. Samuel Andrade.
Você é meu melhor amigo. Obrigado por sempre me ouvir.
Vou buscar as notícias que o Lúcio trouxe.
— Ok.
Davi vai até a sala do jornalista Lúcio Moura, e Samuel, que se senta ao seu lado na redação principal, vê um papel sobre a mesa de seu amigo e, curioso, lê:
"Ela é transparente, sensível e frágil.
Cheia de talvez. Calada, ora barulhenta.
Perturba-se dentro do corpo,
A alma, sabe qual é o seu desgosto."
(Davi Emanuel)
— O Davi escreve umas coisas estranhas... Parece que ele sente tudo isso dentro dele.
Será que ele precisa de ajuda?
Não... Um cara formoso, inteligente... Só deve ter escrito isso por escrever mesmo.
Samuel largou o papel onde estava e voltou aos seus afazeres.
Davi terminou seu trabalho e, juntamente com Samuel, foi almoçar no restaurante próximo ao jornal.
— Esse povo todo aqui? Ninguém merece. Não vamos pegar comida boa...
— Calma, Samuel, vai dar tudo certo. Tem comida para todo mundo. Não é mesmo, Letícia?
— Claro! Hoje estamos com uma super promoção, por isso a casa está lotada.
Mas como vocês são nossos clientes fixos, reservei essa mesa para os dois. E serão atendidos primeiro.
— Tá vendo, Samuel? Por isso que eu gosto dessa menina. Ela sabe cativar um cliente.
— Gosta? Gosta como, Davi?
— Gosto. Simplesmente gosto.
E, meu caro Samuel... não é pouco. É muito.
Continua....
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